Esqueça o oba-oba das lojas, os empurrões no trânsito
e a expectativa de folga, bebida e comilança. Somente o olhar dos animais não
humanos é verdadeiro, dentre o furacão que os engole com mais força, no final
de cada ano. Os animais da pecuária encaram o fim de suas vidas – ‘eles
nasceram para isso’ – enquanto contemplam o traseiro de um clone seu, nos
bretes e corredores de concreto que antecedem a mesa farta preparada com tanto
esmero pelas famílias de bom coração.
O olhar de quem não sabe chorar, já
que a reza na hora do desespero é exclusividade na lista da racionalidade –
essa qualidade que separa a humanidade das bestas-feras. O olhar de quem viu o
filhote ser puxado para longe de si pelos funcionários da fazenda, esse lugar
bucólico onde os animais são tratados como reis, já que optaram por isso em
troca de suas liberdades.
O olhar do frango que está
encaixotado, empilhado em um caminhão que passa na nossa frente quando estamos
na estrada, rumo às férias. Perdemos um segundo, apenas, pensando nisso. Não há
espaço para que ele nos dê um tchauzinho, talvez agradecendo pelo doce toque da
morte que o aliviará e abreviará sua existência marcada pela ausência de mãe,
confinamento, horários alterados para ditar o ritmo da engorda e opressão no
dia a dia.
‘Obrigado, Papai Noel ou menino Jesus,
por me tirar de um aviário com outras milhares de aves. Obrigado pela ração e
água que mantiveram este corpo vivo, pois ele vale pelo preço que alguém paga.
Não tem o valor que minha mãe, animal como eu, instintivamente perceberia, e
por isso me defenderia, em condições normais. Aqui sou um entre milhares, e não
parece fazer muita diferença se eu morrer agora ou esperar o caminhão dos
caixotes. Nasci de uma máquina de ovos, mas espero encontrar minha mãe,
ciscando a meu lado, algum dia.
Obrigado, Deus humano, pela corrente
que sempre existiu em torno do meu pescoço, que não me permite caminhar até o
horizonte. Ou até o ponto onde há sombra, onde a água da chuva não está
empoçada. Agradeço pelos dias que lembraram da minha existência, e sobras de
comida chegaram até onde esta corrente permitiu alcançar. Obrigado, Papai Noel,
por ter sido escolhido como animal de estimação por uma família de humanos.
Obrigado, espírito natalino, por eu ter
puxado tanta carroça em meio à fumaça de óleo diesel, fraco, assustado e
sedento, que enfim eu tombei no asfalto. A última surra que tomei do
carroceiro, para que eu me levantasse, permitiu que enfim meu espírito pudesse
cavalgar livre naquelas campos verdes onde quadrúpedes iguais a mim, porém
belos e com longas crinas, correm sentindo o vento da natureza. Acho que o
esforço que fiz diariamente para tirar meu condutor da miséria, ou pelo menos
diminuir sua pobreza, foi menos do que eu poderia, entao eu aceito meu castigo.
Obrigado, família do presépio, por eu
ter sido o escolhido para, ainda bebê, estar na mesa de tantas residências,
para ter meu pequeno corpo saboreado em uma bonita bandeja, assado e servido à
meia-noite. Ainda não entendi por que nasci e morri tão rápido, se fiz algo
errado a ponto de não poder crescer um pouco mais em um lugar que, onde vi,
havia outros como eu, alguns bem gordos. Mal lembro da minha mãe, mas lembro
que ela não podia se virar, cercada em um gradeado enquanto mamávamos. Talvez
tenha sido azar, talvez tenha sido sorte.
Obrigado, meu Deus, por eu poder
ajudar tanta gente a usar um xampu que não irrite os olhos, uma maquiagem que
não cause problemas, um produto qualquer a ser dado de presente neste Natal,
que nunca vou saber direito, que atendeu os humanos em suas expectativas mais
simples. Estive em um laboratório, cercado de pessoas de jaleco branco, durante
tempo suficiente para saber que sou parte importante do progresso, que a
Ciência evoluiu graças à minha dor, meu aprisionamento e tudo aquilo que os
produtos geraram nos meus olhos e no meu corpo. Fico grato por ter ajudado.
Obrigado, Maria, mãe de todas as mães
que, zelosas como eu, dão leite a seus filhos durante anos, mesmo após o fim de
sua amamentação natural. Minha vida neste estábulo, com úberes gigantes e
doloridos, plugados em uma máquina, é o sacrifício que faço para a saúde
humana. Não percebi, ainda, em minha mentalidade abaixo da humana, porque o
leite de meus filhos vai para os filhos de outra espécie, e até quando já são
adultos. Meu filhote não está mais ao alcance de minha vista, foi retirado cedo
de meu lado, mas sei que o papel dele, como vitelo, ocupa espaço de respeito
junto aos humanos. É alvo de muitos comentários e elogios. Pelo menos é o que
imagino, pois o sacrifício é doloroso o suficiente para, respeitosamente, ousar
questionar o porquê de minha existência. Mas agradeço mesmo assim, Papai Noel.
Obrigado pelas palmas cada vez que
apareço no picadeiro. O olhar das crianças me faz esquecer a minha vida de
tédio e imobilidade, viajando de cidade a cidade. Quem sabe um dia eu e os
demais animais cheguemos ao lugar de onde viemos, que deverá ter muitas
árvores, rios e espaços para correr. Enquanto isso, eu repito as manobras noite
após noite, mostro os mesmos truques que, pela minha teimosia, eu custei a
decorar. Quem sabe neste Natal eu ganhe uma última viagem, de volta ao habitat
que jamais conheci em vida.
Obrigado, Natal, por eu poder aquecer
tanta gente elegante em momentos de frio. Nasci peludo tal como minha mãe, e
como ela pude participar da indústria humana, essa coisa que traz tanto
progresso, dando de bom grado minha própria pele para que maridos mostrem afeto
à esposa, presenteando-as com belos casacos. Muita gente famosa e rica usa a
pele que pode ter sido minha. Isso me enche de orgulho e faz valer o tempo que
morei em uma gaiola pouco maior que meu próprio corpo. Já estava cansado de
andar em círculos, lembrando dos bosques que um dia corri de cima a baixo. Mas
um dia veio a dor que, por pior que tenha sido, me libertou finalmente. Ainda
relutei alguns minutos, já sem pele, mas vi que a liberdade me abraçava e
escurecia minhas vistas. Acho que valeu a pena, pois sou fotografado e até
apareço na televisão, durante o inverno – pelo menos acredito que aquelas
partes sejam minhas, cobrindo o corpo de pessoas tão bonitas e famosas.
Obrigado aos responsáveis.
Obrigado a todos que vieram me
assistir nesta arena. Ainda estou zonzo e ofuscado pela luz após dias de
escuridão, mas já entendi que, aqui, eu sou a atração. Há um semelhante a mim,
porém sem chifres e mais magro, e nele está montado um humano, com roupas
garbosas e armas tão afiadas como as que já furaram tantos iguais a mim. Eu
espero que tudo isto termine logo, pois o cansaço está vencendo a euforia, há
tanto sangue que já não sei se é meu ou de alguém antes de mim, e está difícil
fazer levantar a plateia tantas vezes. Que a morte venha me tocar com a mesma
doçura da última vez que fui tocado pela minha mãe. Ela deve estar orgulhosa de
um filho que resistiu até o fim, cercado de espadas, aplaudido, sangrando
ajoelhado, língua de fora mas fazendo questão de participar do show até o fim.
Acho que os aplausos são para mim, já que os olhares convergem para onde estou.
E eu não sei onde estou.
Obrigado, menino Jesus, por ter
nascido e feito seus iguais perceberem a necessidade de haver uma festa em seu
nome, para redenção e paz, onde eu seria assado em espeto e saboreado por
tantas pessoas felizes, sorridentes e em clima de fraternidade. Jamais imaginei
que, sem saber falar, sem ter tido escolhas, seria eu o ponto central dos
churrascos de de final de ano de tantas empresas, entidades, famílias e grupos
a confraternizar. Aguardei este momento sempre em espaços com arame farpado,
tal como a coroa que um dia finalmente lhe puseram na cabeça, e usei argola no
nariz para que um filho seu, fiel e devoto, me conduzisse para o lugar certo.
Apanhei da vida, mas quem não apanhou? Sempre soube que uma vida de aperto,
confinamento, marcação a ferro quente, castração a frio e morte sobre o
concreto teriam um sentido maior. Obrigado por dar um norte a minha vida. Hoje,
eu sou uma estrela.
Fonte: ANDA
Se as pessoas ao invés de pegar a carne que consomem nas bandejas dos supermercados, tivessem que matar para o mesmo fim, muitos ficariam longe das carnes.
ResponderExcluir